O Terror em Tempos Terríveis*
Hedjan C.S.
Um dia desses ouvi uma pessoa dizer
que o gênero do terror, tanto na literatura quanto no cinema, está com os dias
contados. A primeira página de um jornal ou dez minutos de telejornal tem mais
material assustador do que qualquer filme ou livro. Pra arrematar sua
argumentação, ela disse:
—
Os monstros hoje são boletos vencidos, ficar sem Wi-Fi e dois caras numa moto.
Eu
até acrescentaria mais um na lista dela, o medo de ficar duro.
Apesar
de compartilhar desses medos modernos, e ser capaz até de elencar mais uns 10
ou 12, esse tipo de declaração está bem longe de ser verdade. O objetivo do
terror e do horror nas artes nunca foi o de tentar competir com a realidade. Até
porque seria uma batalha perdida. Não existem limites para a criatividade
humana, especialmente quando aplicada ao mundo real. Nenhum romancista
conseguiu prever os horrores causados pelo nazismo, com seus campos de
concentração, fornos e experiências em humanos. Nenhum livro antecipou o ataque
com gás sarin ao metrô de Tóquio, em 1995, ou o suicídio-massacre comandado
pelo reverendo Jim Jones em Jonestown, na Guiana, em 1979. Isso pra não falar
dos assassinos em série, organizações criminosas, infanticídios, maus tratos a
animais, etc. e tal.
O
horror, o terror e o suspense na literatura, no cinema, no teatro, na música ou
nos quadrinhos possuem uma função, sim. Claro! Eles não estão lá só pra
enfeitar. Não é minha pretensão apontar todas essas funções nesse texto, mas
pelo menos uma pretendo deixar estabelecida.
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H.P. Lovecraft |
É
sempre importante lembrar que “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade
é o medo, e o mais antigo e mais forte tipo de medo é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT,
1973 p. 12). As histórias de terror nos acompanham há muito tempo, mesmo antes
de termos desenvolvido nosso mais primordial meio de escrita. Tais histórias já
tiveram várias funções: estabelecer punições para transgressões, explicar o
mundo de uma forma mágica. De histórias ao redor da fogueira, passando pelos
desenhos em paredes de cavernas até os atuais leitores de e-book, o medo e suas
representações artísticas sempre estiveram presentes.
Apesar
de possuir um público fiel e grande, falando agora especificamente de literatura,
a Literatura do Medo nunca foi um dos mais prestigiados pelos estudos
literários brasileiros. Posso até estar errado, mas talvez essa falta de
problematização e de uma visão mais fundamentada pode ter servido para não
deixar claro o lugar do Medo nas artes. Não adianta apenas produzir algo.
Refletir sobre é importante, especialmente quando se fala em literatura.
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Stephen King |
Como
a linguagem do medo é universal, vou apelar para um escritor americano aqui pra
dar uma ajudinha na definição da função do terror/horror na literatura. Stephen
King procurou em seu livro chamado A Dança Macabra (Dance Macabre, 1981)
dissecar o medo presente nas produções culturais dos anos 50 até os 80. O autor
propõe uma explicativa interessante sobre a função do terror e do horror na literatura.
King
se baseou na definição de Aristóteles de catarse, meio pelo qual o homem
purifica sua alma através de uma representação trágica. Segundo King (apud
Aristóteles) o processo catártico tornaria possível extravasar os pavores
associados ao horror real através do medo gerado pela narrativa ficcional.
Em
outras palavras
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYuXXOwMh6DBipFS_4w5nl8i6CSc1Y2C8sNN7LNofic3g-AZZEMxm-CiXh277BPhK-1lcwupbHIMp218g8uR9N3JkuJmINQZtUbDLuyyRJldBkvzd0KxtZDc4QVyzr6CW2dtL47w2HXkM/s320/DANCA_MACABRA_1241753049B.jpg)
Nesse
sentido, a literatura de terror/horror teria um caráter terapêutico. Todos nós
temos medos, monstros fantasmas. Eles estão escondidos em quartos escuros,
casas abandonadas e esquinas mal iluminadas de nossas mentes. Muitas vezes eles
possuem nomes comuns como medo de ficar doente, morrer, ser assaltado, perder
um ente querido, ficar completamente sem dinheiro, etc. A literatura terror,
horror ou suspense nos permite dar uma cara para esses monstros, tirá-los da
escuridão e arrastá-los para a luz onde podemos dar uma boa olhada neles em
segurança.
Para
finalizar, ainda dando a palavra para King, nós criamos monstros imaginários
para que seja possível lidar com os monstros reais.
Então, da
próxima vez que você encontrar alguém lendo algo medonho no trem, no ônibus ou
em alguma praça, lembre-se de que aquela pessoa está lidando com seus mais
profundos medos através do encontro um monstro que só existe naquelas páginas.
E talvez sejam os mesmos medos reais que você mesmo possui.
Verifique se
a sua porta está fechada antes de deitar.
Até a
próxima.
*Texto publicado originalmente na Revista Breves (fevereiro/março de 2019)
Referências
KING,
Stephen. Dança macabra; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão
dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.
LOVECRAFT,
Howard Phillips. O Horror Sobrenatural em Literatura. Tradução de Celso M.
Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007.