segunda-feira, 22 de junho de 2020

O Terror em Tempos Terríveis


O Terror em Tempos Terríveis*
Hedjan C.S.

Um dia desses ouvi uma pessoa dizer que o gênero do terror, tanto na literatura quanto no cinema, está com os dias contados. A primeira página de um jornal ou dez minutos de telejornal tem mais material assustador do que qualquer filme ou livro. Pra arrematar sua argumentação, ela disse:

— Os monstros hoje são boletos vencidos, ficar sem Wi-Fi e dois caras numa moto.

Eu até acrescentaria mais um na lista dela, o medo de ficar duro.

Apesar de compartilhar desses medos modernos, e ser capaz até de elencar mais uns 10 ou 12, esse tipo de declaração está bem longe de ser verdade. O objetivo do terror e do horror nas artes nunca foi o de tentar competir com a realidade. Até porque seria uma batalha perdida. Não existem limites para a criatividade humana, especialmente quando aplicada ao mundo real. Nenhum romancista conseguiu prever os horrores causados pelo nazismo, com seus campos de concentração, fornos e experiências em humanos. Nenhum livro antecipou o ataque com gás sarin ao metrô de Tóquio, em 1995, ou o suicídio-massacre comandado pelo reverendo Jim Jones em Jonestown, na Guiana, em 1979. Isso pra não falar dos assassinos em série, organizações criminosas, infanticídios, maus tratos a animais,  etc. e tal.

O horror, o terror e o suspense na literatura, no cinema, no teatro, na música ou nos quadrinhos possuem uma função, sim. Claro! Eles não estão lá só pra enfeitar. Não é minha pretensão apontar todas essas funções nesse texto, mas pelo menos uma pretendo deixar estabelecida.

H.P. Lovecraft
É sempre importante lembrar que “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte tipo de medo é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT, 1973 p. 12). As histórias de terror nos acompanham há muito tempo, mesmo antes de termos desenvolvido nosso mais primordial meio de escrita. Tais histórias já tiveram várias funções: estabelecer punições para transgressões, explicar o mundo de uma forma mágica. De histórias ao redor da fogueira, passando pelos desenhos em paredes de cavernas até os atuais leitores de e-book, o medo e suas representações artísticas sempre estiveram presentes.







Apesar de possuir um público fiel e grande, falando agora especificamente de literatura, a Literatura do Medo nunca foi um dos mais prestigiados pelos estudos literários brasileiros. Posso até estar errado, mas talvez essa falta de problematização e de uma visão mais fundamentada pode ter servido para não deixar claro o lugar do Medo nas artes. Não adianta apenas produzir algo. Refletir sobre é importante, especialmente quando se fala em literatura.

Stephen King
Como a linguagem do medo é universal, vou apelar para um escritor americano aqui pra dar uma ajudinha na definição da função do terror/horror na literatura. Stephen King procurou em seu livro chamado A Dança Macabra (Dance Macabre, 1981) dissecar o medo presente nas produções culturais dos anos 50 até os 80. O autor propõe uma explicativa interessante sobre a função do terror e do horror na literatura.









King se baseou na definição de Aristóteles de catarse, meio pelo qual o homem purifica sua alma através de uma representação trágica. Segundo King (apud Aristóteles) o processo catártico tornaria possível extravasar os pavores associados ao horror real através do medo gerado pela narrativa ficcional.

Em outras palavras

“(...) nós inventamos horrores para nos ajudar a suportar horrores verdadeiros. Contando com a infinita criatividade do ser humano, nos apoderamos dos elementos mais polêmicos e destrutivos e tentamos transformá-los em ferramentas – para desmantelar esses mesmos elementos.” (KING: 2007, p. 24)

Nesse sentido, a literatura de terror/horror teria um caráter terapêutico. Todos nós temos medos, monstros fantasmas. Eles estão escondidos em quartos escuros, casas abandonadas e esquinas mal iluminadas de nossas mentes. Muitas vezes eles possuem nomes comuns como medo de ficar doente, morrer, ser assaltado, perder um ente querido, ficar completamente sem dinheiro, etc. A literatura terror, horror ou suspense nos permite dar uma cara para esses monstros, tirá-los da escuridão e arrastá-los para a luz onde podemos dar uma boa olhada neles em segurança.


Para finalizar, ainda dando a palavra para King, nós criamos monstros imaginários para que seja possível lidar com os monstros reais.

Então, da próxima vez que você encontrar alguém lendo algo medonho no trem, no ônibus ou em alguma praça, lembre-se de que aquela pessoa está lidando com seus mais profundos medos através do encontro um monstro que só existe naquelas páginas. E talvez sejam os mesmos medos reais que você mesmo possui.

Verifique se a sua porta está fechada antes de deitar.

Até a próxima.



*Texto publicado originalmente na Revista Breves (fevereiro/março de 2019)



Referências
KING, Stephen. Dança macabra; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.


LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural em Literatura. Tradução de Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007.

Voltem ao trabalho!

Direto ao ponto.

Já faz muito tempo desde minha última publicação por aqui. Andei publicando em vários lugares por aí... Enfim, a maioria dos artigos e ensaios se perderam. Os sites que mantinham os textos foram encerrados por um ou outro motivo... Resumindo: o trabalho se perdeu.

Mas, igual a um vilão de filme de terror slasher que volta na continuação, consegui resgatar vários desses textos.

Então, a partir de hoje, vou começar a jogá-los nesse blog.

Boa leitura.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Herbert West: Re-Animador ou Os Zumbis de Lovecraft

Lovecraft escrevendo contos sangrentos de zumbis?

Acredite, ele já esteve lá!

Resumindo: Herbert West: Re-animador conta a história de um médico, o Dr. West do título, e suas experiências com a vida e a morte. Defendendo a teoria de que o corpo não passa de uma máquina complexa e que, por isso, pode ser reinicializada quando para de funcionar (morre), o bom doutor desenvolve uma fórmula capaz de trazer os mortos de volta à vida. 

A história é contada por um narrador anônimo, uma espécie de assistente do doutor, mostra os esforços nada éticos para testar e aperfeiçoar a tal fórmula. A cada nova tentativa que se transforma em fracasso, os métodos são modificados, tornando-se mais e mais deturpados. Inicialmente a dupla realiza as experiências em uma fazenda abandonada. Depois disso, partem para o clássico roubo de cadáveres. Um pouco mais a frente, assassinato. Tudo em nome da ciência!

Essa não é uma típica história de H.P. Lovecraft. Aqui ele se afasta do horror cósmico e trata de um tipo de horror mais próximo do clichê. Muitos fãs do escritor odeiam essa história, acusando-a de ser rasa, previsível, grosseira, descerebrada (caramba!). Herbert West seria, segundo essas críticas, nada menos do que uma típica história de Cientista Maluco, aquele sujeito capaz de ferrar com metade do planeta pra provar que sua teoria está correta.

A verdade é que o próprio Lovecraft não gostava dessa história. Não gostou de escrevê-la e não gostou do resultado final.

Aí você pergunta, "por que escreveu então?"

Por um motivo bem simples: dinheiro.

O autor estava passando por sérios problemas financeiros na época e a revista pagou 5 dólares por cada trecho da história, que foi publicada seriadamente. Lovecraft precisava de dinheiro. Ponto.

A forma como a história se estruturou também incomodou bastante o escritor. Era uma exigência que cada capítulo terminasse com um gancho para o próximo (o famoso cliffhanger). Além disso, no começo de cada ato havia uma recapitulação do que acontecer no capítulo anterior. Esse tipo de resgate é útil para quem lê um conto seriado. Mas quando você está devorando o livro, é bem chato. Imagino o porre que foi para escrever.

Apesar de ser execrada por muitos fãs e até pelo próprio autor, essa história term muitos aspectos positivos. Fugindo do seu estilo habitual, Lovecraft escrever uma história sangrenta e com cenas chocantes. A narrativa acaba sendo mais ágil do que o habitual ritmo lovecraftiano e várias reviravoltas acontecem conforme a história avança.

Além disso, o Dr. West é, de longe, o personagem humano mais interessante criado pelo autor. Descrito como um indivíduo franzino, inofensivo e delicado, sua genialidade funciona como motor para sua loucura, o que o torna um dos homens mais perigosos que já habitaram as páginas escritas pelo Cavalheiro de Providence.

Outro ponto: os "reanimados", as pessoas mortas que foram trazidas de volta  à "vida" pelo reagente desenvolvido pelo Dr. West, são os seres que posteriormente conheceríamos como "zumbis: corpos mortos reanimados, dotados de agressividade e selvageria extrema, famintos e incontroláveis.

Em resumo, os fãs puristas podem torcer o nariz, mas Herbert West - Reanimador funciona muito bem como uma história de suspense, terror e horror. Apresenta um conceito interessante onde a ameaça é deslocada para a ciência e não para o sobrenatural. Tem um protagonista marcante. Várias reviravoltas. Sangue aos baldes. E os reanimados!

Ou seja, se a combinação desses fatores te parece interessante, não perca tempo. Aposto que você vai gostar dessa história!




Crédito da imagem: 




terça-feira, 24 de abril de 2018

O Exorcista


Dificilmente dá pra falar sobre O Exorcista (William Peter Blatty, 1971) sem apelar para tudo que já foi usado para descrevê-lo: Um clássico eterno do terror; a maior obra de horror do século XX; leitura obrigatória para os fãs não apenas da literatura do medo, mas para qualquer leitor… Tanto o livro quanto o filme homônimo de 1973, continuam a assombrar e apavorar pessoas pelo mundo todo com a simples menção do seu nome.

Eu particularmente tenho um carinho especial por esse livro, porque foi o primeiro livro desse gênero que ganhei, quando tinha nove anos. Sendo assim, vamos dar uma olhada mais demorada nesse livro clássico contemporâneo.
O livro começa com o Padre Lankester Merrin, o exorcista do título, participando de uma escavação arqueológica no Oriente Médio. O padre encontra um ídolo de Pazuzu, o demônio sumério que representa o vento sudoeste. Uma série de acontecimentos incomuns indica que um combate com o mal acontecerá em breve. Percebemos as nuances de seu caráter logo de inicio, um homem de fé, mas confrontado com a necessidade de seguir o exemplo de Cristo e amar ao próximo, seja ele quem for.



Pulamos para o outro lado do mundo e conhecemos Chris McNeil e sua filha Regan, que vivem em Washington, D.C. Chris é atriz de cinema e Regan, uma inteligente e adorável menina de 12 anos de idade. Sem dar muitas revelações do enredo, Regan adoece, seu comportamento começa a mudar drasticamente e um assassinato ocorre na casa onde as duas vivem. Acompanhamos a mãe e sua peregrinação atrás de vários especialistas médicos para descartar as causas prováveis para o comportamento incomum da filha: câncer no cérebro, esquizofrenia, raiva reprimida relativa à separação dos pais, etc etc etc.



O assassinato começa a ser investigado pelo Tenente Kinderman, um personagem interessantíssimo, mas que seria muito mais bem desenvolvido no próximo livro do mesmo autor, O Espírito do Mal (Legion, 1983).

A mãe acaba procurando a ajuda de um padre jesuíta, Damien Karras, um religioso em plena crise de fé. Após alguns contatos com Regan, começa um processo investigativo para afastar quaisquer indícios de que a possessão tenha, na verdade, causa fisiológicas ou psicológicas.

Por fim, quando as suspeitas de que há uma possessão acontecendo são confirmadas, o padre Merrin é chamado para o exorcismo, sendo o padre Karras designado para ser seu assistente.

 O mais interessante de tudo é que, apesar dos temas possessão, medo e horror terem sido fortemente vinculados ao livro, ao longo de sua leitura percebemos que ele se apresenta mais como uma obra que remete aos romances policiais, muito mais populares na época em que foi escrito. Os personagens do Padre Karras e do Detetive Kinderman conduzem investigações, cada um no seu espaço de atuação. Enquanto o padre Karras se ocupa mais e mais da investigação que obrigatoriamente antecede um possível ritual de exorcismo, o detetive, empenhado em resolver o assassinato, segue as pistas que acabam conduzindo para a casa da família de Regan.

William Peter Blaty (1928-2017) conseguiu criar um daqueles livros para serem lidos e relidos, sempre com a possibilidade de que uma nova nuance seja enxergada. Os personagens são bem construídos, possuem medos, desilusões, questionamentos, anseios e preocupações críveis. O autor consegue criar uma aura de mistério e suspense perfeita, que vai aumentando gradativamente conforme o confronto final se aproxima. Ao mesmo tempo certas cenas do cotidiano estão tão presentes na história que o horror se torna algo próximo e possível, porque se mescla ao mundo conhecemos.

Por fim, como já foi dito, sempre que se fala sobre essa obra a palavra “terror/horror/medo” pode saltar na cabeça de quem ouve. É indiscutível que a história mostra uma espiral de apreensão, medo e desespero que, como o Maelstrom de Edgar Allan Poe, arrasta todos os que estão ao seu alcance para o fundo. Entretanto “O Exorcista” é muito mais do que isso. Fala, entre outras coisas, sobre redenção e sacrifício de uma maneira inigualável.





Coluna publicada originalmente na Revista Litere-se em 03 de fevereiro de 2017.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Holidays - uma grata surpresa do cinema de horror atual


Apesar da avalanche de filmes envolvendo assombrações (cheios das famigeradas jumpscares), assassinos sanguinários e seja lá o que for que anda monopolizando as produções de terror atualmente, ainda existe esperança para o cinema do medo, da apreensão e do susto.


Dia desses sai do meu looping de filmes antigos e resolvi assistir um mais recente e bastante interessante.

Holidays (EUA, 2016) é um daqueles antologias de terror que vale muito a pena assistir. O fio condutor, como o nome do filme entrega, são os feriados ou datas comemorativas. Foi uma sacada interessante utilizar datas que já conhecemos para contar histórias de terror, mesmo que isso já tenha sido feito de maneira bem trash (Não estou indicando, apenas mencionando: Natal Sangrento, Krampus, a refilmagem do Dia dos Namorados Macabro, Dia das brincadeiras mortais (que faz referência ao 1º de abril americano, dia dos Tolos), Dia das mães - esse é horrível, etc etc etc).


Sem mais delongas, vamos ver um pouco sobre cada um. Vou me segurar ao máximo para não dar nenhum tipo de spoillers... Se algum escapar, não foi intencional.


Dia dos Namorados

Uma adolescente é apaixonada por seu professor de mergulho olímpico. Durante os momentos em que estão juntos, ela foge da realidade e vai pra um mundo de pensamentos felizes no qual ele também a ama.

O grande problema é que: A) as colegas de treino fazem a garota passar o inferno com perseguições e brincadeiras de mau gosto. B) o professor tem um problema de saúde sério. C) é dia dos namorados.

Esse segmento é um pouco fraco e meio que entrega o que vai acontecer em determinado momento da história. Mas mesmo assim não é um episódio de todo ruim, principalmente pelo desempenho de Madeleine Coghlan, a protagonista com sua cara de maluquinha adorável.
 

Dia de São Patrício


Oba! Aula de biologia...
Uma professora novata do primário enfrenta dificuldades em lidar com uma de suas alunas, uma menininha incrivelmente perturbadora e aparentemente adepta de práticas pagãs.



... Posso dissecar meu sapo vivo?

Esse é um dos melhores episódios. A atmosfera de ameaça vai se construindo aos poucos e a história oferece uma reviravolta muito bem construída. É um daquelas histórias de terror em que, no final, tudo se encaixa.


A árvore da maldição... não, pera.

Além disso, o desempenho da professora (a atriz Ruth Bradley) e da menina (a pequena Isolt McCaffrey) é impecável. A menininha é ameaçadora mesmo com toda a sua fragilidade física e a professora consegue fazer com que nos preocupemos com seu destino.

Páscoa

Esse aqui ganhou pontos comigo por ser curto, porque é uma história meio sem pé nem cabeça. Uma menina fica chocada ao ver o algo andando por sua casa em uma certa noite. Não revelarei mais pra não estragar a surpresa, mas é isso aí em resumo.

Três letras pra você: WTF?

Esse episódio tem um monte de coisas erradas. Começa morno, não desenvolve muito, a criatura aparece...  Apostaram muito mais no horror e no repulsivo do que em criar uma atmosfera de terror.

Dia das Mães

Era uma vez uma mulher que não conseguia parar de engravidar. Toda vez que ela tem relações sexuais, ela engravida.

(é isso aí que você leu, toda vez que namora pelada a moça fica grávida... parafraseando Gary Oldman em O Profissional:  Como assim "toda vez?" TOOOOOOOOOOOOOOOODA A VEZ!")




Por indicação de uma médica que a atende, ela acaba se envolvendo com um grupo de mulheres (feiticeiras) que vivem longe da civilização.


Pela mão, é o Dart Maul...

Apesar de imagens impactantes, esse é o pior de todos. Mesmo sendo uma história curta, conseguiram imprimir um ritmo muito arrastado.  A personagem principal deste também não conseguiu despertar empatia suficiente para que houvesse uma preocupação real com sua segurança - coisa básica para uma história de horror.

Dia dos Pais

Uma jovem recebe uma fita cassete misteriosa de seu pai, que desapareceu há muito tempo. O pai gravou a fita quando ela ainda era criança, no mesmo dia em que desapareceu. Quando ela começa a escutar a fita, o pai dá indicações sobre como ela pode encontrá-lo.

Esse aqui se sai muito bem. Conseguiu prender a atenção e me deixou na ponta da cadeira esperando o desfecho. É uma daquelas típicas situações em que você percebe que no fim tudo não vai acabar bem.

Halloween

Um homem (um ogro, na verdade, melhor exemplar de lixo humano machista, mal educado e abusivo) conduz um serviço de vídeos sexuais pela internet. Suas três funcionárias são mal tratadas por ele e mantidas praticamente como prisioneiras. Esse foi um dos seus maiores erros.

Esse segmento é bem interessante e consegue unir humor e um toque de sangue que não deixa nada a dever à série de filmes Jogos Mortais.

Natal

Para conseguir o presente de Natal do seu filho, um homem acaba cruzando os limites do aceitável.



Esse aqui também ganha pontos por originalidade. Conseguiu criar uma fábula que fala sobre expectativa, posse, consumo, desejos e percepção.  Sem contar que Seth Green dá um show como o cara bobão, infernizado pela mulher e que não quer decepcionar o filho... a ponto de... 

Véspera de Ano Novo

Um assassino em série que encontra suas vítimas entre aspirantes a namorada pela internet (não consegui entender se era Par Perfeito, Tinder ou algo do tipo) se prepara para atacar sua última vítima do ano, em pleno dia 31 de dezembro. Depois de uma conversa muito desajeitada em um restaurante, os dois vão pra casa dela para "conversar em particular".

Apesar da reviravolta meio manjada, vale a pena conferir.


Assista a esse filme. Como eu disse no começo, é bom ver que o cinema de terror não se resume a irritantes sustos repetitivos, baldes de sangue e vísceras, fantasmas e mortes espetaculares. Ainda existem produções muito boas e que, infelizmente, em geral ficam longe dos holofotes do grande circuito cinematográfico.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Os Olhos que Comiam Carne - Humberto de Campos (Parte II)

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.


E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...

(Fim)

Os Olhos que Comiam Carne - Humberto de Campos (Parte I)


Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

(continua)