O filme, uma comédia de segunda categoria com atores de
quinta, estava na metade quando Augusto levantou-se do sofá para pegar mais uma
cerveja na geladeira. Teve a decência de perguntar a Amaral, o dono da casa, se
ele iria querer uma também. Só não fez a mesma pergunta para Peixoto, que
cochilava no sofá com os pés sobre a mesinha de centro, repleta de latas de
cerveja e refrigerante.
- Pega também uns amendoins no armário.
Bom, pelo menos ainda havia bastante cerveja na geladeira.
Enquanto procurava o bendito saco de amendoins no armário,
ouviu um barulho no corredor do prédio. Uma risadinha de mulher. Como estava
perto da porta de serviço, espiou pelo olho mágico. Conseguiu ver as escadas do
prédio e a porta do apartamento em frente. Estava parcialmente aberta e lá
dentro tudo estava escuro. Ficou olhando por mais alguns segundos, curioso para
ver a dona da risada. Teve a impressão de ver algo se mover lá dentro e de
ouvir o som de algo sendo arrastado. A porta do vizinho se abriu um pouco e depois se
fechou com um baque.
Por um breve momento, teve a impressão de também estar sendo
observado.
Pegou as latas que estavam sobre a pia e voltou para a sala.
- Prédio sossegado esse seu – disse entregando a lata para
Amaral – Sabe se tem algum apartamento para alugar?
- Acho que uns dois ou três.
O aluguel daqui é meio caro... E ainda tem o condomínio. Se não fosse o
Peixoto pra rachar o valor eu ainda estaria na casa dos meus pais... Mas nem é
tanto pelo aluguel que eles continuam vazios... Pelo menos eu acho.
O filme estava quase no fim quando terminaram suas cervejas.
Amaral arrotou alto o suficiente para perturbar o sono de Peixoto, que
resmungou e se mexeu um pouco.
- Não é melhor acordar o coitado e mandá-lo para a cama?
- Eu não sou esposa dele. Ele que durma aí. Contanto que não
ronque...
Amaral começou a pular de um canal para o outro. Augusto não
estava com a menor vontade de ir para casa. Não tinha cerveja lá. Torceu para
que o amigo achasse um filme menos pior que o último.
- Você falou que não era tanto pelo aluguel... Qual o
problema então?
- Uma coisa que o porteiro me contou. Contei a história pro
Peixoto... Cara, você precisava ver. Ele ficou uns dois dias dormindo com a luz
do quarto dele acesa.
- Sério?
- Acredita nisso? Um futuro matemático...
- E o que foi que ele contou?
Amaral acabou sua cerveja e abriu a outra.
- Uma dona aqui do prédio ficou louca. Matou o marido
envenenado. Ela era professora aposentada e o marido era protético... Desses
caras que fazem dentaduras. Acharam estranho quando o cara sumiu da firma e ela
sempre dava uma desculpa quando procuravam por ele.
Encheu a boca de batatas fritas, ajudando-as a descer com
mais um gole de cerveja.
- Os vizinhos achavam que ele estava em casa porque ouviam a
tal dona rindo e conversando. Parece que ele nunca foi de falar muito, então
ninguém estranhava ouvir só a voz dela. Que combinação... tagarela e
assassina...
- ... E maluca.
-Escuta só o final. Começaram a sentir um fedor pelo prédio
todo coisa de um mês depois dele sumir. Até que um vizinho do prédio que ficava de frente pra eles chamou a polícia. O cadáver do cara estava na cama deles e o
coitado viu o defunto pela janela. Quando a polícia bateu na porta dela, ela
tomou o mesmo veneno que tinha dado para o marido.
Augusto assobiou admirado.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIv7OKDfdSDR-ZAIqLQ5LaOJamCpp8W2xa9kfbTxUavFG2RumeblkpDlDh70iyh5MiVUa0bhvmypvHWgmuAY0EXOvLCXsZ7G4NZlfA74hhSsBKWnf-TkIU2WqI0_yrXRoGbbx77iZVOak/s320/c_idadedoanjo.jpg)
- Uns cinco anos. Abafaram muito do caso. Eles eram um casal
normal e querido até ela surtar. Mas os moradores dos prédios vizinhos sabem da
história toda... E toda vez que alguém vem para ver um apartamento, acabam
soltando alguma coisa.
- Bom, se for só por isso... – Augusto tomou um gole da sua
cerveja, amassando a lata. Abriu a próxima, mas ficou só segurando a lata, sem
beber. Sentira a cabeça girar um pouco. Era melhor evitar exagerar ou corria o
risco de errar o caminho para casa. - E em qual apartamento foi isso?
- O daí da frente. Nosso vizinho. Até hoje não conseguiram
alugar... O Joel, o porteiro, disse que o cheiro do coroa ficou impregnado lá
dentro. E também falou que toda semana alguém reclama de barulhos lá. Coisas
raspando no chão, pancadas na parede, coisas sendo arrastadas... Teve uma que
interfonou pra portaria no meio da noite reclamando de risadas lá dentro. Claro
que ele nem se coçou. Sabe como são as pessoas... Adoram acreditar nas coisas
que imaginam. Eu acho que tudo não passa de ratos e pessoas que se impressionam
a toa... O lugar está vazio desde antes de nos mudarmos.
Augusto ficou segurando a cerveja e sentindo os dedos
adormecidos. Não era pelo frio da lata. Era puro e simples medo.
- Quer mais uma cerveja? – perguntou Amaral.
Augusto queria. Decidiu beber o máximo que pudesse e esperar
o dia raiar para voltar para casa. Não queria correr o risco de que a porta
abrisse no momento em que ele estivesse esperando o elevador.
Nem queria imaginar o que poderia estar dentro daquele
apartamento, logo ali, do outro lado do corredor.
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