-
Boa tarde. Entrega para o senhor Barreto. – Arfou o recém-chegado.
Mena
desviou os olhos dos papeis que organizava no fichário. Ergueu-se mais por
educação do que por necessidade e contornou sua mesa, indo na direção do homem.
- O
Professor Barreto não está. Sou a secretária dele... O senhor está bem? Parece
meio...
Ia
dizer pálido, mas na verdade o rosto do homem mostrava um tom amarelo doentio.
Apesar da temperatura agradável, sua testa estava porejada de suor e o peito da
camisa do uniforme, molhada.
O
homem derrubou a caixa sobre a mesa e cambaleou. Mena conseguiu amparar a queda
parcialmente. Usando o corpo como uma escora, aproximou-se a tempo do sofá de
espera, onde o homem desabou.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiBMIenAE1RcfBgj2lTBafczAJTrmZwdIO3ww0uvYS7iGRShu0aUSaL-707OTJcbUV75J7PA1G6pC1ZL3hYTy47hda3G5QSyBO4Rn1H7bFDvbzlE2-kpPCsm51CSjC0QMAToWsiRfjWbW4/s400/4623738195_7618a0265f_bc.jpg)
Voltou
correndo e encheu um copo com água. Quando passava na direção do bebedouro, ao
olhar o homem, notou que ele parecia melhor. Ou, pelo menos, melhorando.
Entregou
o copo. A mão do homem ainda tremia um pouco, mas o suor na testa havia
diminuído.
-
Desculpe, dona. Não sei o que aconteceu... Desde que desci do carro não estou
muito bem.
O
homem bebeu o copo de água com goles curtos, respirando fundo enquanto o fazia.
-
Nossa! Parecia uma mistura de resfriado, dengue e anemia... Cruz Credo! Devo
ter te assustado muito, né?
- Um
pouco, sim.
-
Mas já estou melhor. – entregou o copo e levantou com certo esforço. Tirando um
papel amarrotado do bolso traseiro da calça, entregou-o para a secretária.
– Assine
aqui, por favor. Onde está marcado de caneta. Nome e R.G.
A
secretária obedeceu, mas lançou um olhar preocupado ao entregar o papel.
-
Tem certeza de que está bem? Pode ficar mais um pouco se precisar...
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDkhbEr3kvPcFUMwwav88EaicyKBOh86mPwe6NdUxn5Y9k2CN21c3D-4e393FTDdS0PEJUMHea2ltSmE2Z4WFSN6yYjOxKAQgUsM3L1mGNh8kgZBle2dSkvrhNmVxD2oQE-m6GvVS073I/s320/images.jpg)
Quando
saía, olhou rapidamente para a caixa, sentindo um arrepio percorrer sua nuca.
Mena
foi até o corredor e o observou caminhar até a rampa que levaria ao hall dos
elevadores. Talvez o homem tivesse abusado da sorte e, em vez de esperar pelo
elevador, resolveu vir pelas escadas. Nem todo mundo estava preparado para
subir nove andares. Aquele mal estar podia ter sido a maneira do corpo dizer
“corta essa”.
Todos
os outros departamentos já haviam encerrado, mas o professor Titular do
Departamento de História Antiga resolvera ficar até mais tarde. Que bom pra
ele.
Olhou
para a caixa caída sobre a mesa. Havia o endereço e o nome do remetente. Um tal
José de Arimatéia havia enviado a encomenda de Porto Velho. Pensou por quantas
mãos aquela encomenda passara antes de chegar ao Rio de Janeiro. O que seria?
Ergueu
a mão e aproximou o dedo em riste para tocar a fileira de 12 selos postais.
Sempre fora fascinada por selos, chegou a ter uma coleção quando era adolescente.
O dedo tocou o selo.
Ela
o recolheu rapidamente.
Sentiu
uma onda de repulsa percorrer seu corpo. Mas não foi o selo. Tocar o pacote foi
como tocar algo desagradável, algo ruim... Lembrou-se do dia em que uma lacraia
subiu por sua perna enquanto tomava banho. Trincou os dentes.
O
telefone tocou:
-
Departamento de História, sala do Professor Titular Barreto.
-
Boa tarde, senhorita Mena. Sou eu. Alguém me procurou?
- Boa
tarde. O professor Venceslau deixou os resultados das avaliações de desempenho
dos alunos junto com um material de pesquisa que o senhor havia solicitado. E
chegou um pacote para o senhor...
Ouviu
o Professor respirar profundamente pelo telefone.
-
Dispense qualquer um que aparecer e cancele qualquer compromisso da noite.
Mena
sentiu a conhecida voz do seu chefe diferente. Ele parecia empolgado. Desligou
o telefone e ficou pensando se a empolgação seria por causa do material deixado
pelo outro professor ou por causa da caixa.
Deixou
o pacote onde estava e concentrou-se nos seus afazeres.
Já
passavam de 17h50 quando o professor chegou. Lançou um olhar para a caixa,
ainda sobre a mesa. Depois de cumprimentar a secretária rapidamente, pegou o
pacote e o envelope deixado pelo professor e entrou em sua sala.
Passaram-se
alguns minutos. Mena estava atualizando planilhas com os horários de agosto quando
o telefone de sua mesa tocou. Dois toques curtos, dois toques longos. Ligação
interna.
-
Senhorita Mena, a senhora já pode ir pra casa. Preciso analisar alguns itens e
não vou mais receber ninguém hoje.
Dessa
vez a voz do chefe parecia ainda mais diferente. Ele parecia cansado.
- Tem
certeza, Professor? Ainda não são nem...
-
Todos já foram embora. Vá para casa também. Nos vemos em agosto. Bom descanso.
E
desligou.
Mena
obedeceu. Recolheu todos os papéis de cima da mesa, desligou o computador e
arrumou sua bolsa. Saindo da sala, viu o vigilante parado no corredor. Ele a
cumprimentou, mas ela preferiu ignorar.
Já estava
perto da entrada do Metrô quando parou. Procurou na bolsa por quase 5 minutos
até desistir e reconhecer que tinha de voltar. Suas chaves de casa ficavam no
mesmo chaveiro onde as que abriam sua gaveta no trabalho estavam. Não era a
primeira vez que as esquecia. Percorreu o caminho até o hall dos elevadores
xingando-se mentalmente.
Apertou
o botão do elevador. Com o fim das aulas, só um elevador funcionava. Utilização
consciente de recursos. Xingou o dono dessa ideia também.
Atravessou
a rampa do nono andar andando rápido. Bufou ao ver que o vigilante, mais uma
vez, não estava ali.
No
caminho para a sala, o próprio som de seus passos no corredor vazio a
sobressaltou. Nunca sentira problemas em ficar ali sozinha, mesmo quando
precisava trabalhar até tarde. Mas agora alguma coisa estava diferente. Era
como se algo a espreitasse ou esperasse por ela.
Abriu
a porta lentamente, procurando não fazer barulho. Não queria dar ao chefe a
impressão de ser distraída ou avoada. Entrou como um ladrão e viu a chave presa
na gaveta. Conseguiu pegá-la evitando o tilintar denunciador e fechava o zíper
da bolsa quando ouviu um som na sala do professor.
Ficou
parada ouvindo. Então o som se repetiu. Parecia um balão com água sendo espetado.
Aproximou-se da porta. Já havia se convencido de que imaginara o som, quando um
gemido chegou aos seus ouvidos.
Ela
empurrou a porta devagar, abrindo só uma fresta. A luz da sala estava apagada,
mas uma luz bruxuleante iluminava fracamente o ambiente. Ela sentiu cheiro de parafina.
Pela fresta podia ver apenas a parede repleta de diplomas do Professor.
- Professor
Barreto? O senhor está bem?
Empurrou
a porta mais um pouco e entrou.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgEQTvo68FZpB8BadrxDh4WD7tYFoGPPrR5UxY7SRW5gneDbbXAx4PO1nBKMJifwRfvkxA9BZgJeQMV_eDVSQPMu9C5svz2KLE3QrCYnccdgHF40v591QxQBnOzlbAkwDQGBkClr8A2SI/s200/%25C3%25ADndice2.jpg)
Se
mexer não era a palavra adequada. Na verdade era como se ele tivesse sido
atacado por um acesso de tosse. O corpo se sacudia, mas era um movimento estranho,
espasmódico. Foi então que ele ergueu o corpo, mas mesmo esse não foi um
movimento natural. Parecia que alguém havia puxado cordas invisíveis e que o
professor, agora um marionete, havia sido levantado. O movimento violento fez com que a vela
caísse no carpete da sala, mas ela não percebeu isso.
O
rosto do homem estava coberto pelo que pareciam as maiores espinhas do mundo.
Tinham o tamanho de uvas. Algumas haviam estourado e vazavam um líquido
amarelado. Enquanto olhava, paralisada e
sentindo sua sanidade se esvair, uma das espinhas do rosto estourou, com o
mesmo som que ela ouvira a pouco.
Ela
conseguiu ver a outra mão do professor, a que estava escondida sob seu corpo.
Primeiro achou estranha a posição como a mão se projetava. Um estalo fez com
que ela percebesse que aquela não era a mão do professor. E com uma certeza
maldita ela soube que aquilo havia saído da caixa que chegara pelo correio.
Era
uma mão humana seca e mumificada. A cor amarelada era a mesma que vira no rosto
do entregador. A mão do professor que segurava aquela abominação estava coberta
pelas mesmas pústulas que apareciam no rosto, com a diferença de que a grande
quantidade tornava o membro irreconhecível. Parecia uma couve flor alienígena, inchada
e pulsante.
As
últimas coisas que viu antes de sair correndo da sala foram alguns papéis que
pareciam pergaminhos sobre a mesa na frente do professor e os olhos do homem. Eram os olhos de um louco que se atreveu a abrir portas que deveriam
ser mantidas fechadas e teve o cérebro reduzido a nada pelo conhecimento que
alcançou.
O
detector de fumaça apitando fez com que o vigilante abandonasse a conversa com
a menina bonitinha da cantina e corresse na direção do Bloco B. Parou antes de
chegar à sala de onde vinha o som, pois a secretária estava deitada em posição
fetal no meio do corredor. Quando outros vigilantes chegaram ao local, a sala
já ardia em chamas. O incêndio foi controlado a tempo, tendo destruído apenas a
sala do professor e parte da antessala. O corpo do professor foi encontrado
calcinado.
A secretária nunca contou o que viu naquele lugar e pediu demissão antes do final das férias. Atribuíram isso ao incidente. Depois disso, não se soube mais dela.
Um
ano depois, ao final da reforma, a sala recebeu o nome do professor, como uma
homenagem póstuma, e foi cedido ao Centro Acadêmico dos alunos de História. Apesar
de ficarem satisfeitos com o espaço, não era incomum ouvir reclamações entre os
que frequentavam o local. Alguns falavam sobre o cheiro de algo queimado que
parecia impregnar o ambiente de vez em quando. Outros não se sentiam
confortáveis quando a noite chegava. Sentiam-se observados por algo mau.
Não
sabiam, mas realmente algo espreitava nas sombras.
Hedjan C.S.
muito bom! legal!
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